domingo, 30 de agosto de 2009


"Num meio-dia de fim de primavera eu tive um sonho como uma fotografia: eu vi Jesus Cristo descer à Terra.
Ele veio pela encosta de um monte, mas era outra vez menino, a correr e a rolar-se pela erva
A arrancar flores para deitar fora, e a rir de modo a ouvir-se de longe.
Ele tinha fugido do céu. Era nosso demais pra fingir-se de Segunda pessoa da Trindade.
Um dia que DEUS estava dormindo e o Espírito Santo andava a voar, Ele foi até a caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro Ele fez com que ninguém soubesse que Ele tinha fugido; com o segundo Ele se criou eternamente humano e menino; e com o terceiro Ele criou um Cristo eternamente na cruz e deixou-o pregado na cruz que há no céu e serve de modelo às outras.
Depois Ele fugiu para o Sol e desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje Ele vive na minha aldeia, comigo. É uma criança bonita, de riso natural.
Limpa o nariz com o braço direito, chapinha nas poças d'água, colhe as flores, gosta delas, esquece.
Atira pedras aos burros, colhe as frutas nos pomares, e foge a chorar e a gritar dos cães.
Só porque sabe que elas não gostam, e toda gente acha graça, Ele corre atrás das raparigas que levam as bilhas na cabeça e levanta-lhes a saia.
A mim, Ele me ensinou tudo. Ele me ensinou a olhar para as coisas. Ele me aponta todas as cores que há nas flores e me mostra como as pedras são engraçadas quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas.
Damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudo que nunca pensamos um no outro. Vivemos juntos os dois com um acordo íntimo, como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer nós brincamos as cinco pedrinhas no degrau da porta de casa. Graves, como convém a um DEUS e a um poeta. Como se cada pedra fosse todo o Universo e fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cair no chão.
Depois eu lhe conto histórias das coisas só dos homens. E Ele sorri, porque tudo é incrível. Ele ri dos reis e dos que não são reis. E tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios.
Depois Ele adormece e eu o levo no colo para dentro da minha casa, deito-o na minha cama, despindo-o lentamente, como seguindo um ritual todo humano e todo materno até Ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma. Às vezes Ele acorda de noite, brinca com meus sonhos. Vira uns de pena pro ar, põe uns por cima dos outros, e bate palmas, sozinho, sorrindo para os meus sonhos.
Quando eu morrer, Filhinho, seja eu a criança, o mais pequeno, pega-me Tu ao colo, leva-me para dentro a Tua casa. Deita-me na tua cama. Despe o meu ser, cansado e humano. Conta-me histórias caso eu acorde para eu tornar a adormecer, e dá-me sonhos Teus para eu brincar."

sábado, 8 de agosto de 2009

Pensa em decorar um poema deste tamanho...


Agora imagina que você tem 99 anos com este poema em mente, sem errar uma vírgula...
Foi exatamente isto que presenciei hoje à tarde! E detalhe, este poema não era o único que estava presente na cabeça de Dona Alice.

ABC da pobreza

José Bernardo da Silva

A
A pobreza neste mundo
lamenta os trabalhos seus
eu falo por causa justa
que também lamento os meus
só me resta uma esperança
que pobre é filho de Deus

B
Bem conheço que a riqueza
é ouro, prata e o cobre
a pompa e a fantasia
é honra e brasão de nobre
se hei de querer ser odiado
mas antes quero ser pobre

C
Coitado de todo aquele
que por ter moeda forte
cheio de orgulho e soberba
sem pensar na sua sorte
qual será seu resultado
quando Deus mandar a morte

D
Devemos amar a Deus
abandonar a avareza
adorar a fé mais pura
o autor da natureza
ao mesmo tempo pensar
que no céu não vai riqueza

E
Eu quero bem a pobreza
porque dela sou irmão
inda que ela me atrase
eu reconheço a razão
porque é herança minha
desde o tempo de Adão

F
Feliz do pobre que sofre
seus males com paciência
tendo resignação
Perseverança e prudência
vence as dificuldades
tem de Deus a preferência

G
Grandeza neste mundo
vacila todo momento
é como a nuvem azulada
que anda a favor do vento
neste mundo dá prazer
no outro horrível tormento

H
Homem pobre não é nada
nem falado por ninguém
o mal quando nos persegue
não se sabe de onde vem
segundo o rifão antigo
na terra vale quem tem

I
Ira se o rico na terra
perde a glória a esperança
talvez a única coisa
que tenha por sua herança
depois de tudo perdido
de que serve tal vingança?

J
Juro como todo aquele
que sofre pela pobreza
é grande filho de Deus
não se lembra da riqueza
tendo um tesouro no céu
para que quer mais grandeza?

K
Kalendário que o pobre
deve ter em si seguro
é viver bem conformado
ser bem consciente e puro
como quem vive errado
e ver o clarão do futuro

L
Louvemos a Deus ser pobre
de muito boa vontade
uns trabalham pela fé
outros pela claridade
quem caminha para Deus
chega mais cedo ou mais tarde

M
Maria foi muito pobre
Jesus nada possuiu
seus tormentos dolorosos
Com paciência sentiu
triunfou glorioso
para o alto céu subiu

N
Ninguém fale da pobreza
que fala contra a razão
se Deus quisesse bem dava
a cada pobre um milhão
mas ficava embaraçado
o caminho da salvação

O
Os trabalhos mais horríveis
que há para se sofrer
é pensar sem causa justa
é lutar e não vencer
quem luta em favor de Deus
é muito raro perder

P
Pilatos foi grande homem
Herodes rei coroado
com um espelho bem claro
para quem vive enganado
porém nós todos sabemos
qual foi o seu resultado

Q
Quando quero maldizer-me
porque me vejo arrasado
na mesma hora me lembro
são muitos no meu estado!
e todos também padecem
por isto estou conformado

R
Rico será todo aquele
que tem bom comportamento
que ama o rito divino
e guarda seu mandamento
quem este mundo despreza
no outro acha aposento

S
Se quisermos ser feliz
neste mundo universal
amem a Deus e a pobreza
fugindo sempre do mal
que teremos preferência
no trono celestial

T
Todo mundo não é rico
egoísta e poderoso
porque enchia-se o mundo
de avarento orgulhoso
ficará para o futuro
um tempo mais perigoso

U
Um monarca neste mundo
da pobreza não tem dó
um magista Salomão
um duque um capitão só
com a morte é reduzido
em cinza poeira e pó

V
Vê-se uma árvore vestida
de flores tão asseada
e pouco vê-se despida
pela luz do sol trilhada
por si já se conhece
que riqueza não é nada

X
Xadrez grosseiro mal feito
vivem os pobres vestidos
São José que foi mais pobre
atendei nosso gemidos
pra que diante de Deus
sejamos favorecidos

Z
Zombará deste A B C
escrito e feito por mim
se houver cristão na terra
que censure e ache ruim
ou nasceu de satanás
ou procede de Caim

(Silva, José Bernardo da. ABC da pobreza. Ed. Prop. José Bernardo da Silva, Tip São Francisco, 1956)